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Zadig era um buscador. Nada para ele importava mais do que encontrar a Verdade e alcançar a liberação dos sentidos. Ainda bastante jovem, amealhava um profundo conhecimento dos textos sagrados da Torá e dedicava todo o seu tempo livre ao estudo do Corão. Quase nunca empenhava energia em passatempos, e a vida social não tinha para ele tanta importância quanto para os outros rapazes da sua idade. Tinha consciência plena de que a vida terrena era breve, e que os dias dos homens passam com a velocidade de uma tempestade no deserto, por isso lhe importava mais juntar tesouros no Céu eterno do que nesta Terra temporária. Num belo dia, Zadig voltava da escola para casa, quando encontrou no caminho um alarde e um princípio de confusão, causados pela presença em sua vila de um famoso homem santo. Dizia-se dele que tinha o poder de curar doentes e confortar os desesperançados com palavras de pura sabedoria. O que alguém tão elevado teria vindo fazer na sua humilde vila? Zadig imediatamente entrou no meio da pequena multidão que se formava em torno de um ancião de vestes claras.
Quando finalmente conseguiu chegar próximo ao centro do tumulto, foi visto pelo velho sábio, que fez um gesto para que as pessoas que se agitavam ao seu redor se afastassem. Então voltou seus olhos na direção de Zadig e o chamou para perto dele. As pessoas da vila, espantadas, abriram espaço para a passagem do rapaz. Zadig se aproximou e o velho lhe passou os braços ao redor do pescoço, dando-lhe um beijo fraternal em cada uma das faces. Então o fitou fixamente no fundo dos olhos e disse: “Acabo de encontrar a razão pela qual sabia que deveria vir até esta vila”. Disse a Zadig que ele tinha um grande futuro pela frente, e que se realmente quisesse e demonstrasse empenho, iria conhecer grandes verdades da vida espiritual antes do que imaginava. Disse ainda que Zadig tinha vindo a este mundo capacitado de certos talentos especiais. Mas lhe fez uma imprescindível advertência: para que essas coisas se cumprissem, Zadig teria que abandonar tudo, naquele exato momento, e segui-lo aonde quer que fosse.
Zadig pensou em sua família, por algum tempo. Pensou nos seus pais, em sua casa, no conforto e em todas coisas materiais que teria que deixar para trás, se resolvesse seguir aquele homem estranho. Mas, olhando nos seus olhos, viu um fogo que o atraía tão fortemente que não pôde resistir. Respondeu que sim, abandonaria tudo e o seguiria a partir daquele momento, pra onde quer que ele fosse. O ancião ainda o advertiu: “Se você quiser realmente me seguir, tem que me dar a sua palavra de que vai confiar em mim, plenamente. Esta é a minha condição. Você confia e vai confiar para sempre em mim?” – Zadig nunca tinha visto aquele homem na sua frente, mas quando fitou novamente sua face, uma certa luz parecia emanar dela, e aquele fogo nos olhos novamente o atraiu tão fortemente que só pôde responder que sim. E o seguiu. Tomaram a estrada sem que Zadig soubesse exatamente para onde estavam indo.
E foi assim que Zadig, a partir daquele dia, tornou-se um viajante que não conhecia o próprio destino, ao lado de um ancião que nunca lhe revelava seu nome. Caminhavam juntos por dias inteiros, sem que Zadig jamais soubesse para onde estavam indo. O ancião só lhe dizia que a razão de estarem caminhando juntos por aquela estrada era que Zadig estava indo ao encontro de uma importante lição que lhe seria necessária para que pudesse depois concluir a sua missão e o seu caminho sozinho. E que fazia parte da sua própria missão conduzir Zadig.
Assim se passaram semanas. Caminhavam sempre os dias inteiros, e ao final do dia descansavam. Às vezes à beira da estrada, sob uma ponte ou uma árvore. Às vezes pediam abrigo em alguma casa ou hospedaria. Nem sempre eram bem recebidos pelos moradores das vilas por onde passavam, mas nunca deixavam de encontrar abrigo para passar a noite, um lugar para se banharem e o alimento necessário para cada dia. Nunca passaram fome, nem nenhuma necessidade realmente básica. Às vezes alguém aparecia do nada com dois pratos de comida quentinha, outras vezes alguém oferecia dinheiro para que pudessem comer em alguma estalagem. Nas noites de chuva sempre havia um teto acolhedor sobre suas cabeças. Conversavam por horas a fio, quase sempre sobre assuntos transcendentais. Zadig fazia perguntas e o ancião respondia, mas as respostas para alguns questionamentos era sempre o silêncio, como quando ele queria saber sobre o destino daquela viagem e a identidade do ancião. O máximo que obtinha como resposta era um suave “tudo tem o seu tempo certo...”.
Mas Zadig sempre aprendia coisas belas, todos os dias. Às vezes, o ancião permanecia mudo por longas horas ou mesmo um dia inteiro, como que num voto de silêncio não declarado. Zadig imaginava que aquilo devia ter uma razão de ser, e como fizera um voto, dizendo que sempre confiaria no seu tutor, quando percebia que o dia não seria de conversa, tentava aproveitar para meditar em silêncio, durante a caminhada, fortalecendo dentro de si os aprendizados recentes. Zadig realmente confiava no ancião, plenamente, e procurava cumprir todas as suas orientações com humildade, muito embora às vezes fosse difícil ou mesmo impossível compreender alguns dos seus atos.
Meses se passaram. Chegou um belo dia em que andaram pela estrada, como sempre, desde o nascer do sol até o entardecer. Mas dessa vez ainda continuaram caminhando, mesmo depois disso, até chegar noite alta. Finalmente, os dois parceiros de viagem chegaram numa vila muito pequena e humilde. Pela primeira vez, nada tinha acontecido, durante todo o dia, para que a fome de ambos fosse saciada. Ninguém lhes trouxera comida ou oferecido dinheiro para que pudessem matar a fome. Estavam em jejum desde o raiar do dia, caminhando sem parar até a noite escura, sem nenhuma refeição. Zadig estava realmente exausto e faminto, e para piorar, este havia sido um daqueles dias em que o ancião não lhe dirigira a palavra nem por uma vez sequer. Algumas vezes até tinha tentado iniciar uma conversa, principalmente com a intenção de perguntar a que horas comeriam, mas em todas fora interrompido por gestos do companheiro pedindo silêncio. Já dentro da pequena vila, o ancião, se comportando como se soubesse exatamente para onde estavam indo, tomou uma pequena ruela de barro, que os levou a um pobre, pequeno e muito velho casebre, que se encontrava quase oculto atrás de um extenso mato alto. O ancião, sem dizer uma palavra, abriu o pequeno portão de madeira que dava acesso ao singelo quintal, entrou e foi bater à porta tosca. Voltando-se para o exausto Zadig, falou pela primeira vez naquele dia inteiro: “Venha cá!” ..
Uma jovem senhora, de aspecto muito sofrido, veio atender. Já era tarde, e o semblante da mulher demonstrava que ela acabara de ser acordada pelas batidas na porta. Mesmo faminto e extenuado, Zadig sentiu-se desconfortável por acordar aquela pobre mulher àquela hora da noite. Mas ela prontamente convidou-os a entrar, e insistiu para que se sentassem à mesa muito simples. Enquanto mexia nos seus utensílios de cozinhar, explicou que ultimamente andava muito triste, pois além de ter ficado viúva um ano antes, recentemente perdera também o filho mais velho. “Meu outro filho, o mais jovem, está já dormindo. Perdoem-no, ele está muito cansado, trabalhou o dia inteiro na lavoura, e amanhã terá que acordar muito cedo”, ela disse. Nem perguntou se estavam com fome, porque isso era óbvio. Enquanto abria as portas do armário da cozinha, Zadig via que estavam praticamente vazios. Ela não tinha quase nada com que servi-los. Mas do pouco que tinha, pegou a última porção de arroz e o último pedaço de carne seca. Juntou tudo numa panela e em pouco tempo preparou uma deliciosa sopa para os viajantes esfalfados. Serviu Zadig e seu companheiro à mesa, com toda gentileza, e tirou do fundo de um pote o último pedaço de pão para acompanhar a sopa. Zadig estava esfomeado e devorou tudo rapidamente, mas sentia uma ponta de remorso por pensar que estavam comendo todo o alimento que aquela pobre mulher provavelmente tinha guardado para o dia seguinte. Depois da refeição, ela contou como havia perdido seu filho mais velho há pouco tempo, assassinado por salteadores no campo, e que desde então se encontrava muito deprimida. Zadig se apiedou profundamente daquela dona tão simples e bondosa. Ele sabia que o sábio ancião poderia reconfortá-la com algumas palavras de luz e de verdade (ele era muito bom nisso), mas ele nada dizia. Num dado momento, Zadig chegou inquiri-lo, para ver se respondia com alguma pérola de sabedoria, algo que a tranqüilizasse ou trouxesse alguma paz para aquela alma sofredora. Mas o outro permanecia em silêncio e assim ficou por todo o tempo que durou o jantar. Lágrimas corriam pelas faces da mulher, enquanto ela contava a história da morte do filho mais jovem. Zadig sempre querendo confortá-la, dizer alguma coisa que suavizasse o seu sofrimento... ele tinha aprendido tantas coisas importantes a respeito da vida, nestes dias de jornada ao lado do velho sábio, coisas sobre vida e morte, sobre o valor do sofrimento nesta vida... Mas ele não conseguia dizer uma palavra. Percebia naquele momento o quanto entender alguma coisa intelectualmente é diferente de compreender algo na prática, numa situação de vida real. Agora que precisava fazer uso de tudo que supostamente aprendera, simplesmente não era capaz de levar qualquer consolo para alguém que tanto precisava. Mas, acima de tudo, estava decepcionado com a atitude do seu tutor, que poderia ter feito algo de bom e nada fez.
Depois do jantar, a senhora pediu licença, dizendo que precisaria se ausentar por alguns instantes. Saiu por uma porta e Zadig pôde ouvir a sua voz abafada, vinda de trás da porta, acordando seu filho. Mesmo com certa dificuldade, era possível ouvir o que dizia: “Levante-se e vamos dormir no chão! Temos visitas!”..
Zadig não podia acreditar. Ele e seu companheiro estavam acostumados a dormir no chão. Qualquer lugar debaixo de um teto seria mais do que suficiente para que passassem uma noite confortável. Olhou para o ancião, esperando que ele impedisse aquele absurdo. Nada. Insistiu com ele para que não deixasse a mulher desalojar o filho da própria cama, mas ele o encarou com um olhar frio e respondeu: “Eu quero dormir numa cama macia, hoje. Você não?” – Logo a mulher voltou e disse: “Agora vou preparar um banho quente para vocês e vou me retirar, se não precisarem mais de mim. Neste quarto há uma cama pronta para cada um de vocês. Eu e meu filho dormiremos no chão esta noite. Não há nenhum problema com isso, estamos acostumados a fazer isso sempre que algum peregrino passa por aqui. Sabemos que são homens de Deus, por isso temos prazer em servi-los”. Zadig ainda esperava que seu companheiro impedisse aquela pobre e sofrida mulher de se sacrificar pelo conforto deles. Esperava que dissesse alguma coisa, mas ele nada disse. Apenas assentiu com a cabeça, aceitando todas as gentilezas. Zadig começava a se sentir muito confuso com tudo aquilo. Quando já estavam deitados, ainda perguntou o porquê do comportando estranho, mas só obteve uma resposta: “Apenas observe e procure aprender”.
No meio da noite, Zadig acordou com um ruído estranho vindo de um outro cômodo da casa. Pela luz da lua que passava por uma fresta da janela, pôde observar que o ancião não estava no leito ao seu lado. Achou estranho, levantou-se e, sem fazer nenhum ruído, foi até a porta. Ela não estava fechada, havia uma vão por onde ele podia ver o que acontecia do outro lado. A janela deste outro aposento estava aberta e a luz do luar iluminava bem o ambiente. Assim, Zadig pôde ver claramente a viúva e seu jovem filho dormindo no chão, abraçados, em cima de um velho cobertor. Vendo aquela cena se sentiu envergonhado, uma vez mais, por estar confortavelmente acomodado numa cama. Seu tutor o obrigara a aceitar a hospitalidade da mulher e ele o fez, esperando que houvesse um bom motivo para aquilo. Então, desviando o olhar, viu o seu tutor no outro canto do quarto, remexendo dentro de um velho armário. O que estaria fazendo, vasculhando sem autorização os pertences alheios? Ele se comportava como um ladrão, furtivamente, sem fazer barulho. Depois de algum tempo, encontrou um pequeno e velho baú de madeira escondido cuidadosamente atrás de outros objetos. Afastou-os e retirou cuidadosamente o baú, com as duas mãos. Colocou-o devagar sobre uma mesa e o abriu. Logo em seguida, retirou todo o seu conteúdo e espalhou sobre a mesa. Eram algumas pedras preciosas, que a viúva guardava. Provavelmente as economias de uma vida inteira ou a herança deixada por seu falecido marido. E então, Zadig quase não pôde acreditar no que seus olhos viram: O ancião recolheu todas as pedras que estavam dentro do baú e as guardou dentro de uma pequena trouxa que fez com um pano. Logo a seguir, guardou o baú no mesmo lugar onde o encontrara, escondeu a trouxa de pano entre suas vestes e se voltou na direção do quarto, sempre furtivamente. Zadig correu de volta para a cama, se deitou e se cobriu, fingindo que estava dormindo. Mas viu claramente o seu mestre entrar, abrir sua bolsa e guardar lá dentro a o produto do furto que acabara de cometer!
Zadig não podia acreditar naquilo! Estivera enganado o tempo todo a respeito de seu velho guru? Seria ele um enganador, apenas um ladrão muito hábil, que se fazia valer dos seus conhecimentos místicos para lesar o próximo? Um verdadeiro lobo em pele de cordeiro? Seria possível que em todo o tempo que permaneceram juntos ele não tivesse feito outra coisa senão deslumbrá-lo com belas palavras e falsos ensinamentos espirituais?
Amanheceu o dia. Zadig despertou. Ele não tinha conseguido dormir direito, mas o ancião continuava tranqüilamente deitado em sua cama, dormindo profundamente. Sua consciência parecia tranqüila como a de um bebê! Zadig sentia um misto de indignação e perturbação. Mas não queria aceitar que tinha abandonado sua família, a escola, o convívio dos amigos, tudo enfim, para seguir um patife travestido de sábio. Levantou-se, foi ao lavatório fazer sua higiene matinal. A dona da casa não estava, tinha saído cedo, ela também trabalhava no campo. Ao passar pela cozinha, viu que ela tinha guardado o último toco de pão que sobrara da noite anterior para que ele e o (falso?) “homem santo” pudessem fazer o desjejum. Zadig sentia-se profundamente confuso, sem saber o que fazer. Mas resolveu consigo mesmo que não diria nada ao ancião, porque não conseguia conceber que ele realmente levaria a idéia de roubar a pobre mulher adiante. Iria esperar até o fim, para ver onde tudo daria. Sentia o seu estômago se revirar, mas mesmo assim ainda se lembrava da promessa que tinha feito: confiaria no seu tutor até o fim.
O ancião acordou, lavou-se e voltou a cozinha. Comeu o último pedaço de pão sem oferecer a Zadig e sem se importar se a pobre viúva ou seu filho teriam o que comer naquele dia. Depois chamou Zadig para retomarem a estrada, dizendo que o seu aprendizado estava prestes a se completar. Zadig perguntou se ele tinha certeza de que não tinha nada a fazer antes de partirem, querendo dar uma chance ao ancião de se arrepender do seu ato execrável. Mas este o olhou tranqüilamente e respondeu com apenas um sonoro e tranqüilo “Óbvio que não”. Zadig quase não podia mais se conter, mas permaneceu em silêncio e voltou a seguir seu tutor. Quando saíram do velho casebre, o velho se dirigiu até uma pequena despensa que havia do lado de fora e pegou um recipiente que estava cheio da querosene usada para acender os lampiões. Sem dizer palavra, começou a espalhar o combustível ao redor de toda a casinha e nas paredes ressecadas. Os olhos de Zadig se arregalaram quando viram o ancião riscar um fósforo e atear fogo à humilde residência da viúva!
Zadig gritou, protestou, ele não podia acreditar no que estava acontecendo. As chamas já altas envolviam toda a casa, quando ele correu atrás do ancião, que já andava longe, se adiantando no caminho de volta à estrada. “O que acabou de fazer? O que está acontecendo, o senhor poderia me explicar?” – O velho o segurou forte pelos ombros, com um vigor incomum para um homem daquela idade, e olhando fundo nos seus olhos, perguntou: “Lembra-se do que você me prometeu, quando resolveu me seguir?” – e virando as costas retomou seu caminho para a estrada, sem dizer mais nada. Zadig estava transtornado, completamente confuso. E não saberia nem explicar o porquê, mas seguiu mais uma vez o ancião. Sem saber que o mais surpreendente ainda estava por vir.
O caminho para a estrada passava por uma velha e estreita ponte, sobre um rio de águas impetuosas. Zadig e o ancião estavam atravessando, e a cabeça do primeiro parecia girar, tão confuso ele estava com os acontecimentos recentes. Neste momento, quando estavam bem no meio da ponte, o ancião parou e pediu a Zadig que também parasse por um momento. Será que ele finalmente iria explicar o que estava acontecendo? Mas não haveria tempo pra isso. Logo a seguir, ouviu-se um grito, e do outro lado da ponte vinha correndo, desesperado, o filho mais jovem da pobre viúva. Quando os viu, perguntou o que estava acontecendo, disse que alguém o informara que sua casa estava pegando fogo. Zadig não soube o que responder, e o ancião não disse nada. O rapaz então retomou sua corrida, mas quando ia passando ao lado do velho, este o empurrou com um gesto vigoroso, para fora da ponte! O pobre rapaz despencou da ponte, gritando - em poucos segundos foi tragado pelas águas violentas, sendo arrastado até sucumbir às profundezas e dele não restar mais nenhum sinal. Tudo aconteceu tão rápido que Zadig não pôde fazer nada a não ser gritar, além disso ele não sabia nadar, e se tivesse se atirado naquelas águas terríveis para tentar salvar o garoto, não poderia ter feito absolutamente nada.
Esta havia sido a última gota d’água! Zadig entregou-se a uma fúria incontrolável, e não tentou mais conter uma reação violenta. Avançou para cima do seu ex-tutor, desferiu-lhe dois violentos socos na face, e quando este caiu aos seus pés, desabafou toda sua angústia em altos brados: “Você é o mais falso dos mestres! Amaldiçôo o dia em que o conheci, e maldito o dia em que resolvi segui-lo! Você não passa de um ladrão desprezível! Tudo que têm são palavras vazias! Aquela pobre mulher nos recebeu com amor e atenção, nos alimentou com as suas últimas provisões. Desalojou da cama o próprio filho, que era a última coisa que ela tinha nesta vida, e ela mesma abriu mão do próprio leito para nos dar conforto, e o que você fez? Como retribuiu a esta pobre viúva? Roubou-a vergonhosamente na calada da noite, tomou dela a única coisa de valor que ainda possuía, queimou a sua casa, e agora acabou de assassinar o seu único filho?? Eu o desprezo! Eu o odeio! Exijo que suma da minha frente, antes que eu acabe com a sua vida! - Zadig falava atropelando umas palavras com outras, sem respirar, o rosto distorcido pelo ódio e revolta - Mas não pense que não vou denunciá-lo às autoridades! Em pouco tempo você estará preso, e eu espero que seja executado ou que passe os seus últimos dias apodrecendo sua carcaça velha numa cela imunda!!”..
O ancião limpou o sangue que começava a escorrer do seu lábio inferior e se levantou tranqüilamente. Em seu rosto vermelho aparecia um sorriso, quando ele começou a falar: “ Nunca confie em ninguém, e às vezes nem mesmo em si mesmo. Está escrito: ‘Maldito é o homem que confia no homem’. Peça orientação aos Céus para saber o que é bom e o que é mau, e viva somente segundo a sua consciência e fazendo uso do seu discernimento em qualquer situação. De repente, a promessa que você me fez já não tinha a menor importância, diante do que você viu bem diante dos seus olhos, não é? Nossa jornada, juntos, está completa. Você acaba de aprender hoje a sua primeira real lição, porque a viveu na prática e a sentiu na pele”. Sim, aquilo fazia sentido, mas Zadig não podia acreditar que aquele velho insano tinha roubado e incendiado a casa de uma pobre viúva, e, além disso, assassinado uma pessoa apenas para lhe ensinar uma lição! Isso não fazia nenhum sentido! Mas o ancião continuou falando: “Eis a sua lição: Não julgar nunca as intenções de Deus! Não pretender jamais trocar a confiança na Sua Sabedoria pelo grosseiro intelecto humano! Frágil mortal! Pare de questionar O que você deveria reverenciar!”...
Zadig ainda não entendia nada, e ainda sentia vontade de socar seu antigo professor. Mas subitamente, percebeu, estarrecido, que as formas do ancião estavam mudando. Sua aparência e as formas do seu corpo se alteravam. Sua pele começava a se deformar e expandir em todos os lados, e todo seu corpo se tornava uma massa desfigurada, que inflou até que o que antes fora pele se rompesse e se rasgasse em muitas partes, que caíram por terra, se tornando em cinzas. Zadig olhou e viu o que havia por baixo da aparência do ancião: um ser maravilhoso, de pele reluzente como metal polido e asas flamejantes! Sua estatura era grande e seu semblante era terrível como o de um ser para o qual tempo e espaço significam nada. Zadig caiu prostrado, aterrorizado. Então aquele que um dia se parecera com um velho voltou a falar, agora com uma voz que ressoava como um estrondo:
“Você não me reconhece? Eu sou o anjo da morte! Eu cumpro os desígnios do Altíssimo. Fui enviado para cumprir uma missão especial, porque com ela alguém importante deveria aprender algo fundamental. Este alguém é você. Uma grande missão também o aguarda neste mundo, mas você não será capaz de cumprí-la se não tiver aprendido a lição que eu lhe trouxe. Vou lhe explicar tudo o que você pensa que viu, para que finalmente entenda:
A mulher que nos recebeu tem um futuro luminoso, que nunca poderia se cumprir sem a minha intervenção, que é o cumprimento da Vontade de Deus. Antes da nossa chegada, ela precisou sofrer, porque só assim saberia estar apta a valorizar devidamente e saber desfrutar das grandes bênçãos que irá receber. Ela perdeu seu marido, violento e infiel, que só lhe deu desgostos. Quanto ao filho mais velho, saiba que o seu assassino não foi um salteador, mas seu próprio irmão mais novo, por inveja - o mesmo que eu acabei de precipitar desta ponte, cumprindo a minha tarefa de ceifar sua vida. Você me viu empurrá-lo, mas todos entenderão o ocorrido como um acidente. E na verdade, foi isto que realmente aconteceu, porque eu não existo no seu mundo, e assim todas as minhas ações são como acidentes ou reveses naturais da vida. Esse rapaz cruel já tinha decidido assassinar, nesta manhã, também a sua própria mãe, para ficar com a propriedade e com as pequenas pedras preciosas que ela guardava e eu escondi esta noite. Quando chegamos, ele pensou em aproveitar a nossa presença para culpar-nos pelo crime. Só por não ter encontrado as pedras no lugar de sempre foi que resolveu adiar seus planos. Tencionava antes descobrir onde sua mãe tinha guardado as pedras, para depois concretizar seu plano. As pedras encontram-se neste exato momento no meio das cinzas da casa incendiada, e serão ainda hoje encontradas pela dona. Mas já não serão mais tão importantes, porque com o incêndio da velha casa a viúva vai descobrir algo que se encontrava escondido, enterrado sob a sua fundação há muitos anos: um tesouro que foi ali colocado pelo antigo proprietário, antes de falecer. Somente com o incêndio total do velho casebre é que ela poderia encontrar o tesouro. Mas não é só. Também por causa deste incêndio, virão algumas pessoas do vilarejo vizinho, por curiosidade, e entre elas um homem solteiro, gentil e atencioso, que vai conhecer a viúva e em breve se tornará seu marido. Eles viverão felizes e terão dois filhos bons e atenciosos. Por fim, o rapaz que você viu cair da ponte não morreu. Ele está inconsciente agora, mas será transportado por seu próprio anjo de guarda para um lugar distante, onde vai cumprir o seu destino. Um dia ele voltará para confessar o seu crime e se desculpar com sua mãe”.
Zadig estava ainda atordoado, mas agora a serenidade finalmente começava a surgir em seu espírito. O anjo perguntou: ”O que você aprendeu?” E Zadig respondeu: “Esta foi a minha lição: Nem tudo é o que parece. Nunca mais duvidarei da perfeição dos desígnios divinos. Nunca vou querer julgar com medidas humanas as Razões e a Perfeição de Deus. Cada pequeno acontecimento tem um excelente motivo, mesmo que eu não compreenda, em princípio”.
O anjo sorriu, mostrando-se satisfeito, e concluiu: “Lembre-se sempre, esta é a maldição do tempo, fazer com que os homens não percebam o espaço entre causa e conseqüência, ação e reação. Agora volte para a sua casa e se esforce para aprender sempre mais, porque o seu tempo ainda não é chegado. Meu nome é Yesod, e no dia da sua libertação, voltaremos a nos encontrar” . Dizendo isto, o anjo da morte elevou-se ao céu, até acima das nuvens, desaparecendo num clarão fulgurante.
Zadig era um buscador. Nada para ele importava mais do que encontrar a Verdade e alcançar a liberação dos sentidos. Ainda bastante jovem, amealhava um profundo conhecimento dos textos sagrados da Torá e dedicava todo o seu tempo livre ao estudo do Corão. Quase nunca empenhava energia em passatempos, e a vida social não tinha para ele tanta importância quanto para os outros rapazes da sua idade. Tinha consciência plena de que a vida terrena era breve, e que os dias dos homens passam com a velocidade de uma tempestade no deserto, por isso lhe importava mais juntar tesouros no Céu eterno do que nesta Terra temporária. Num belo dia, Zadig voltava da escola para casa, quando encontrou no caminho um alarde e um princípio de confusão, causados pela presença em sua vila de um famoso homem santo. Dizia-se dele que tinha o poder de curar doentes e confortar os desesperançados com palavras de pura sabedoria. O que alguém tão elevado teria vindo fazer na sua humilde vila? Zadig imediatamente entrou no meio da pequena multidão que se formava em torno de um ancião de vestes claras.
Quando finalmente conseguiu chegar próximo ao centro do tumulto, foi visto pelo velho sábio, que fez um gesto para que as pessoas que se agitavam ao seu redor se afastassem. Então voltou seus olhos na direção de Zadig e o chamou para perto dele. As pessoas da vila, espantadas, abriram espaço para a passagem do rapaz. Zadig se aproximou e o velho lhe passou os braços ao redor do pescoço, dando-lhe um beijo fraternal em cada uma das faces. Então o fitou fixamente no fundo dos olhos e disse: “Acabo de encontrar a razão pela qual sabia que deveria vir até esta vila”. Disse a Zadig que ele tinha um grande futuro pela frente, e que se realmente quisesse e demonstrasse empenho, iria conhecer grandes verdades da vida espiritual antes do que imaginava. Disse ainda que Zadig tinha vindo a este mundo capacitado de certos talentos especiais. Mas lhe fez uma imprescindível advertência: para que essas coisas se cumprissem, Zadig teria que abandonar tudo, naquele exato momento, e segui-lo aonde quer que fosse.
Zadig pensou em sua família, por algum tempo. Pensou nos seus pais, em sua casa, no conforto e em todas coisas materiais que teria que deixar para trás, se resolvesse seguir aquele homem estranho. Mas, olhando nos seus olhos, viu um fogo que o atraía tão fortemente que não pôde resistir. Respondeu que sim, abandonaria tudo e o seguiria a partir daquele momento, pra onde quer que ele fosse. O ancião ainda o advertiu: “Se você quiser realmente me seguir, tem que me dar a sua palavra de que vai confiar em mim, plenamente. Esta é a minha condição. Você confia e vai confiar para sempre em mim?” – Zadig nunca tinha visto aquele homem na sua frente, mas quando fitou novamente sua face, uma certa luz parecia emanar dela, e aquele fogo nos olhos novamente o atraiu tão fortemente que só pôde responder que sim. E o seguiu. Tomaram a estrada sem que Zadig soubesse exatamente para onde estavam indo.
E foi assim que Zadig, a partir daquele dia, tornou-se um viajante que não conhecia o próprio destino, ao lado de um ancião que nunca lhe revelava seu nome. Caminhavam juntos por dias inteiros, sem que Zadig jamais soubesse para onde estavam indo. O ancião só lhe dizia que a razão de estarem caminhando juntos por aquela estrada era que Zadig estava indo ao encontro de uma importante lição que lhe seria necessária para que pudesse depois concluir a sua missão e o seu caminho sozinho. E que fazia parte da sua própria missão conduzir Zadig.
Assim se passaram semanas. Caminhavam sempre os dias inteiros, e ao final do dia descansavam. Às vezes à beira da estrada, sob uma ponte ou uma árvore. Às vezes pediam abrigo em alguma casa ou hospedaria. Nem sempre eram bem recebidos pelos moradores das vilas por onde passavam, mas nunca deixavam de encontrar abrigo para passar a noite, um lugar para se banharem e o alimento necessário para cada dia. Nunca passaram fome, nem nenhuma necessidade realmente básica. Às vezes alguém aparecia do nada com dois pratos de comida quentinha, outras vezes alguém oferecia dinheiro para que pudessem comer em alguma estalagem. Nas noites de chuva sempre havia um teto acolhedor sobre suas cabeças. Conversavam por horas a fio, quase sempre sobre assuntos transcendentais. Zadig fazia perguntas e o ancião respondia, mas as respostas para alguns questionamentos era sempre o silêncio, como quando ele queria saber sobre o destino daquela viagem e a identidade do ancião. O máximo que obtinha como resposta era um suave “tudo tem o seu tempo certo...”.
Mas Zadig sempre aprendia coisas belas, todos os dias. Às vezes, o ancião permanecia mudo por longas horas ou mesmo um dia inteiro, como que num voto de silêncio não declarado. Zadig imaginava que aquilo devia ter uma razão de ser, e como fizera um voto, dizendo que sempre confiaria no seu tutor, quando percebia que o dia não seria de conversa, tentava aproveitar para meditar em silêncio, durante a caminhada, fortalecendo dentro de si os aprendizados recentes. Zadig realmente confiava no ancião, plenamente, e procurava cumprir todas as suas orientações com humildade, muito embora às vezes fosse difícil ou mesmo impossível compreender alguns dos seus atos.
Meses se passaram. Chegou um belo dia em que andaram pela estrada, como sempre, desde o nascer do sol até o entardecer. Mas dessa vez ainda continuaram caminhando, mesmo depois disso, até chegar noite alta. Finalmente, os dois parceiros de viagem chegaram numa vila muito pequena e humilde. Pela primeira vez, nada tinha acontecido, durante todo o dia, para que a fome de ambos fosse saciada. Ninguém lhes trouxera comida ou oferecido dinheiro para que pudessem matar a fome. Estavam em jejum desde o raiar do dia, caminhando sem parar até a noite escura, sem nenhuma refeição. Zadig estava realmente exausto e faminto, e para piorar, este havia sido um daqueles dias em que o ancião não lhe dirigira a palavra nem por uma vez sequer. Algumas vezes até tinha tentado iniciar uma conversa, principalmente com a intenção de perguntar a que horas comeriam, mas em todas fora interrompido por gestos do companheiro pedindo silêncio. Já dentro da pequena vila, o ancião, se comportando como se soubesse exatamente para onde estavam indo, tomou uma pequena ruela de barro, que os levou a um pobre, pequeno e muito velho casebre, que se encontrava quase oculto atrás de um extenso mato alto. O ancião, sem dizer uma palavra, abriu o pequeno portão de madeira que dava acesso ao singelo quintal, entrou e foi bater à porta tosca. Voltando-se para o exausto Zadig, falou pela primeira vez naquele dia inteiro: “Venha cá!” ..
Uma jovem senhora, de aspecto muito sofrido, veio atender. Já era tarde, e o semblante da mulher demonstrava que ela acabara de ser acordada pelas batidas na porta. Mesmo faminto e extenuado, Zadig sentiu-se desconfortável por acordar aquela pobre mulher àquela hora da noite. Mas ela prontamente convidou-os a entrar, e insistiu para que se sentassem à mesa muito simples. Enquanto mexia nos seus utensílios de cozinhar, explicou que ultimamente andava muito triste, pois além de ter ficado viúva um ano antes, recentemente perdera também o filho mais velho. “Meu outro filho, o mais jovem, está já dormindo. Perdoem-no, ele está muito cansado, trabalhou o dia inteiro na lavoura, e amanhã terá que acordar muito cedo”, ela disse. Nem perguntou se estavam com fome, porque isso era óbvio. Enquanto abria as portas do armário da cozinha, Zadig via que estavam praticamente vazios. Ela não tinha quase nada com que servi-los. Mas do pouco que tinha, pegou a última porção de arroz e o último pedaço de carne seca. Juntou tudo numa panela e em pouco tempo preparou uma deliciosa sopa para os viajantes esfalfados. Serviu Zadig e seu companheiro à mesa, com toda gentileza, e tirou do fundo de um pote o último pedaço de pão para acompanhar a sopa. Zadig estava esfomeado e devorou tudo rapidamente, mas sentia uma ponta de remorso por pensar que estavam comendo todo o alimento que aquela pobre mulher provavelmente tinha guardado para o dia seguinte. Depois da refeição, ela contou como havia perdido seu filho mais velho há pouco tempo, assassinado por salteadores no campo, e que desde então se encontrava muito deprimida. Zadig se apiedou profundamente daquela dona tão simples e bondosa. Ele sabia que o sábio ancião poderia reconfortá-la com algumas palavras de luz e de verdade (ele era muito bom nisso), mas ele nada dizia. Num dado momento, Zadig chegou inquiri-lo, para ver se respondia com alguma pérola de sabedoria, algo que a tranqüilizasse ou trouxesse alguma paz para aquela alma sofredora. Mas o outro permanecia em silêncio e assim ficou por todo o tempo que durou o jantar. Lágrimas corriam pelas faces da mulher, enquanto ela contava a história da morte do filho mais jovem. Zadig sempre querendo confortá-la, dizer alguma coisa que suavizasse o seu sofrimento... ele tinha aprendido tantas coisas importantes a respeito da vida, nestes dias de jornada ao lado do velho sábio, coisas sobre vida e morte, sobre o valor do sofrimento nesta vida... Mas ele não conseguia dizer uma palavra. Percebia naquele momento o quanto entender alguma coisa intelectualmente é diferente de compreender algo na prática, numa situação de vida real. Agora que precisava fazer uso de tudo que supostamente aprendera, simplesmente não era capaz de levar qualquer consolo para alguém que tanto precisava. Mas, acima de tudo, estava decepcionado com a atitude do seu tutor, que poderia ter feito algo de bom e nada fez.
Depois do jantar, a senhora pediu licença, dizendo que precisaria se ausentar por alguns instantes. Saiu por uma porta e Zadig pôde ouvir a sua voz abafada, vinda de trás da porta, acordando seu filho. Mesmo com certa dificuldade, era possível ouvir o que dizia: “Levante-se e vamos dormir no chão! Temos visitas!”..
Zadig não podia acreditar. Ele e seu companheiro estavam acostumados a dormir no chão. Qualquer lugar debaixo de um teto seria mais do que suficiente para que passassem uma noite confortável. Olhou para o ancião, esperando que ele impedisse aquele absurdo. Nada. Insistiu com ele para que não deixasse a mulher desalojar o filho da própria cama, mas ele o encarou com um olhar frio e respondeu: “Eu quero dormir numa cama macia, hoje. Você não?” – Logo a mulher voltou e disse: “Agora vou preparar um banho quente para vocês e vou me retirar, se não precisarem mais de mim. Neste quarto há uma cama pronta para cada um de vocês. Eu e meu filho dormiremos no chão esta noite. Não há nenhum problema com isso, estamos acostumados a fazer isso sempre que algum peregrino passa por aqui. Sabemos que são homens de Deus, por isso temos prazer em servi-los”. Zadig ainda esperava que seu companheiro impedisse aquela pobre e sofrida mulher de se sacrificar pelo conforto deles. Esperava que dissesse alguma coisa, mas ele nada disse. Apenas assentiu com a cabeça, aceitando todas as gentilezas. Zadig começava a se sentir muito confuso com tudo aquilo. Quando já estavam deitados, ainda perguntou o porquê do comportando estranho, mas só obteve uma resposta: “Apenas observe e procure aprender”.
No meio da noite, Zadig acordou com um ruído estranho vindo de um outro cômodo da casa. Pela luz da lua que passava por uma fresta da janela, pôde observar que o ancião não estava no leito ao seu lado. Achou estranho, levantou-se e, sem fazer nenhum ruído, foi até a porta. Ela não estava fechada, havia uma vão por onde ele podia ver o que acontecia do outro lado. A janela deste outro aposento estava aberta e a luz do luar iluminava bem o ambiente. Assim, Zadig pôde ver claramente a viúva e seu jovem filho dormindo no chão, abraçados, em cima de um velho cobertor. Vendo aquela cena se sentiu envergonhado, uma vez mais, por estar confortavelmente acomodado numa cama. Seu tutor o obrigara a aceitar a hospitalidade da mulher e ele o fez, esperando que houvesse um bom motivo para aquilo. Então, desviando o olhar, viu o seu tutor no outro canto do quarto, remexendo dentro de um velho armário. O que estaria fazendo, vasculhando sem autorização os pertences alheios? Ele se comportava como um ladrão, furtivamente, sem fazer barulho. Depois de algum tempo, encontrou um pequeno e velho baú de madeira escondido cuidadosamente atrás de outros objetos. Afastou-os e retirou cuidadosamente o baú, com as duas mãos. Colocou-o devagar sobre uma mesa e o abriu. Logo em seguida, retirou todo o seu conteúdo e espalhou sobre a mesa. Eram algumas pedras preciosas, que a viúva guardava. Provavelmente as economias de uma vida inteira ou a herança deixada por seu falecido marido. E então, Zadig quase não pôde acreditar no que seus olhos viram: O ancião recolheu todas as pedras que estavam dentro do baú e as guardou dentro de uma pequena trouxa que fez com um pano. Logo a seguir, guardou o baú no mesmo lugar onde o encontrara, escondeu a trouxa de pano entre suas vestes e se voltou na direção do quarto, sempre furtivamente. Zadig correu de volta para a cama, se deitou e se cobriu, fingindo que estava dormindo. Mas viu claramente o seu mestre entrar, abrir sua bolsa e guardar lá dentro a o produto do furto que acabara de cometer!
Zadig não podia acreditar naquilo! Estivera enganado o tempo todo a respeito de seu velho guru? Seria ele um enganador, apenas um ladrão muito hábil, que se fazia valer dos seus conhecimentos místicos para lesar o próximo? Um verdadeiro lobo em pele de cordeiro? Seria possível que em todo o tempo que permaneceram juntos ele não tivesse feito outra coisa senão deslumbrá-lo com belas palavras e falsos ensinamentos espirituais?
Amanheceu o dia. Zadig despertou. Ele não tinha conseguido dormir direito, mas o ancião continuava tranqüilamente deitado em sua cama, dormindo profundamente. Sua consciência parecia tranqüila como a de um bebê! Zadig sentia um misto de indignação e perturbação. Mas não queria aceitar que tinha abandonado sua família, a escola, o convívio dos amigos, tudo enfim, para seguir um patife travestido de sábio. Levantou-se, foi ao lavatório fazer sua higiene matinal. A dona da casa não estava, tinha saído cedo, ela também trabalhava no campo. Ao passar pela cozinha, viu que ela tinha guardado o último toco de pão que sobrara da noite anterior para que ele e o (falso?) “homem santo” pudessem fazer o desjejum. Zadig sentia-se profundamente confuso, sem saber o que fazer. Mas resolveu consigo mesmo que não diria nada ao ancião, porque não conseguia conceber que ele realmente levaria a idéia de roubar a pobre mulher adiante. Iria esperar até o fim, para ver onde tudo daria. Sentia o seu estômago se revirar, mas mesmo assim ainda se lembrava da promessa que tinha feito: confiaria no seu tutor até o fim.
O ancião acordou, lavou-se e voltou a cozinha. Comeu o último pedaço de pão sem oferecer a Zadig e sem se importar se a pobre viúva ou seu filho teriam o que comer naquele dia. Depois chamou Zadig para retomarem a estrada, dizendo que o seu aprendizado estava prestes a se completar. Zadig perguntou se ele tinha certeza de que não tinha nada a fazer antes de partirem, querendo dar uma chance ao ancião de se arrepender do seu ato execrável. Mas este o olhou tranqüilamente e respondeu com apenas um sonoro e tranqüilo “Óbvio que não”. Zadig quase não podia mais se conter, mas permaneceu em silêncio e voltou a seguir seu tutor. Quando saíram do velho casebre, o velho se dirigiu até uma pequena despensa que havia do lado de fora e pegou um recipiente que estava cheio da querosene usada para acender os lampiões. Sem dizer palavra, começou a espalhar o combustível ao redor de toda a casinha e nas paredes ressecadas. Os olhos de Zadig se arregalaram quando viram o ancião riscar um fósforo e atear fogo à humilde residência da viúva!
Zadig gritou, protestou, ele não podia acreditar no que estava acontecendo. As chamas já altas envolviam toda a casa, quando ele correu atrás do ancião, que já andava longe, se adiantando no caminho de volta à estrada. “O que acabou de fazer? O que está acontecendo, o senhor poderia me explicar?” – O velho o segurou forte pelos ombros, com um vigor incomum para um homem daquela idade, e olhando fundo nos seus olhos, perguntou: “Lembra-se do que você me prometeu, quando resolveu me seguir?” – e virando as costas retomou seu caminho para a estrada, sem dizer mais nada. Zadig estava transtornado, completamente confuso. E não saberia nem explicar o porquê, mas seguiu mais uma vez o ancião. Sem saber que o mais surpreendente ainda estava por vir.
O caminho para a estrada passava por uma velha e estreita ponte, sobre um rio de águas impetuosas. Zadig e o ancião estavam atravessando, e a cabeça do primeiro parecia girar, tão confuso ele estava com os acontecimentos recentes. Neste momento, quando estavam bem no meio da ponte, o ancião parou e pediu a Zadig que também parasse por um momento. Será que ele finalmente iria explicar o que estava acontecendo? Mas não haveria tempo pra isso. Logo a seguir, ouviu-se um grito, e do outro lado da ponte vinha correndo, desesperado, o filho mais jovem da pobre viúva. Quando os viu, perguntou o que estava acontecendo, disse que alguém o informara que sua casa estava pegando fogo. Zadig não soube o que responder, e o ancião não disse nada. O rapaz então retomou sua corrida, mas quando ia passando ao lado do velho, este o empurrou com um gesto vigoroso, para fora da ponte! O pobre rapaz despencou da ponte, gritando - em poucos segundos foi tragado pelas águas violentas, sendo arrastado até sucumbir às profundezas e dele não restar mais nenhum sinal. Tudo aconteceu tão rápido que Zadig não pôde fazer nada a não ser gritar, além disso ele não sabia nadar, e se tivesse se atirado naquelas águas terríveis para tentar salvar o garoto, não poderia ter feito absolutamente nada.
Esta havia sido a última gota d’água! Zadig entregou-se a uma fúria incontrolável, e não tentou mais conter uma reação violenta. Avançou para cima do seu ex-tutor, desferiu-lhe dois violentos socos na face, e quando este caiu aos seus pés, desabafou toda sua angústia em altos brados: “Você é o mais falso dos mestres! Amaldiçôo o dia em que o conheci, e maldito o dia em que resolvi segui-lo! Você não passa de um ladrão desprezível! Tudo que têm são palavras vazias! Aquela pobre mulher nos recebeu com amor e atenção, nos alimentou com as suas últimas provisões. Desalojou da cama o próprio filho, que era a última coisa que ela tinha nesta vida, e ela mesma abriu mão do próprio leito para nos dar conforto, e o que você fez? Como retribuiu a esta pobre viúva? Roubou-a vergonhosamente na calada da noite, tomou dela a única coisa de valor que ainda possuía, queimou a sua casa, e agora acabou de assassinar o seu único filho?? Eu o desprezo! Eu o odeio! Exijo que suma da minha frente, antes que eu acabe com a sua vida! - Zadig falava atropelando umas palavras com outras, sem respirar, o rosto distorcido pelo ódio e revolta - Mas não pense que não vou denunciá-lo às autoridades! Em pouco tempo você estará preso, e eu espero que seja executado ou que passe os seus últimos dias apodrecendo sua carcaça velha numa cela imunda!!”..
O ancião limpou o sangue que começava a escorrer do seu lábio inferior e se levantou tranqüilamente. Em seu rosto vermelho aparecia um sorriso, quando ele começou a falar: “ Nunca confie em ninguém, e às vezes nem mesmo em si mesmo. Está escrito: ‘Maldito é o homem que confia no homem’. Peça orientação aos Céus para saber o que é bom e o que é mau, e viva somente segundo a sua consciência e fazendo uso do seu discernimento em qualquer situação. De repente, a promessa que você me fez já não tinha a menor importância, diante do que você viu bem diante dos seus olhos, não é? Nossa jornada, juntos, está completa. Você acaba de aprender hoje a sua primeira real lição, porque a viveu na prática e a sentiu na pele”. Sim, aquilo fazia sentido, mas Zadig não podia acreditar que aquele velho insano tinha roubado e incendiado a casa de uma pobre viúva, e, além disso, assassinado uma pessoa apenas para lhe ensinar uma lição! Isso não fazia nenhum sentido! Mas o ancião continuou falando: “Eis a sua lição: Não julgar nunca as intenções de Deus! Não pretender jamais trocar a confiança na Sua Sabedoria pelo grosseiro intelecto humano! Frágil mortal! Pare de questionar O que você deveria reverenciar!”...
Zadig ainda não entendia nada, e ainda sentia vontade de socar seu antigo professor. Mas subitamente, percebeu, estarrecido, que as formas do ancião estavam mudando. Sua aparência e as formas do seu corpo se alteravam. Sua pele começava a se deformar e expandir em todos os lados, e todo seu corpo se tornava uma massa desfigurada, que inflou até que o que antes fora pele se rompesse e se rasgasse em muitas partes, que caíram por terra, se tornando em cinzas. Zadig olhou e viu o que havia por baixo da aparência do ancião: um ser maravilhoso, de pele reluzente como metal polido e asas flamejantes! Sua estatura era grande e seu semblante era terrível como o de um ser para o qual tempo e espaço significam nada. Zadig caiu prostrado, aterrorizado. Então aquele que um dia se parecera com um velho voltou a falar, agora com uma voz que ressoava como um estrondo:
“Você não me reconhece? Eu sou o anjo da morte! Eu cumpro os desígnios do Altíssimo. Fui enviado para cumprir uma missão especial, porque com ela alguém importante deveria aprender algo fundamental. Este alguém é você. Uma grande missão também o aguarda neste mundo, mas você não será capaz de cumprí-la se não tiver aprendido a lição que eu lhe trouxe. Vou lhe explicar tudo o que você pensa que viu, para que finalmente entenda:
A mulher que nos recebeu tem um futuro luminoso, que nunca poderia se cumprir sem a minha intervenção, que é o cumprimento da Vontade de Deus. Antes da nossa chegada, ela precisou sofrer, porque só assim saberia estar apta a valorizar devidamente e saber desfrutar das grandes bênçãos que irá receber. Ela perdeu seu marido, violento e infiel, que só lhe deu desgostos. Quanto ao filho mais velho, saiba que o seu assassino não foi um salteador, mas seu próprio irmão mais novo, por inveja - o mesmo que eu acabei de precipitar desta ponte, cumprindo a minha tarefa de ceifar sua vida. Você me viu empurrá-lo, mas todos entenderão o ocorrido como um acidente. E na verdade, foi isto que realmente aconteceu, porque eu não existo no seu mundo, e assim todas as minhas ações são como acidentes ou reveses naturais da vida. Esse rapaz cruel já tinha decidido assassinar, nesta manhã, também a sua própria mãe, para ficar com a propriedade e com as pequenas pedras preciosas que ela guardava e eu escondi esta noite. Quando chegamos, ele pensou em aproveitar a nossa presença para culpar-nos pelo crime. Só por não ter encontrado as pedras no lugar de sempre foi que resolveu adiar seus planos. Tencionava antes descobrir onde sua mãe tinha guardado as pedras, para depois concretizar seu plano. As pedras encontram-se neste exato momento no meio das cinzas da casa incendiada, e serão ainda hoje encontradas pela dona. Mas já não serão mais tão importantes, porque com o incêndio da velha casa a viúva vai descobrir algo que se encontrava escondido, enterrado sob a sua fundação há muitos anos: um tesouro que foi ali colocado pelo antigo proprietário, antes de falecer. Somente com o incêndio total do velho casebre é que ela poderia encontrar o tesouro. Mas não é só. Também por causa deste incêndio, virão algumas pessoas do vilarejo vizinho, por curiosidade, e entre elas um homem solteiro, gentil e atencioso, que vai conhecer a viúva e em breve se tornará seu marido. Eles viverão felizes e terão dois filhos bons e atenciosos. Por fim, o rapaz que você viu cair da ponte não morreu. Ele está inconsciente agora, mas será transportado por seu próprio anjo de guarda para um lugar distante, onde vai cumprir o seu destino. Um dia ele voltará para confessar o seu crime e se desculpar com sua mãe”.
Zadig estava ainda atordoado, mas agora a serenidade finalmente começava a surgir em seu espírito. O anjo perguntou: ”O que você aprendeu?” E Zadig respondeu: “Esta foi a minha lição: Nem tudo é o que parece. Nunca mais duvidarei da perfeição dos desígnios divinos. Nunca vou querer julgar com medidas humanas as Razões e a Perfeição de Deus. Cada pequeno acontecimento tem um excelente motivo, mesmo que eu não compreenda, em princípio”.
O anjo sorriu, mostrando-se satisfeito, e concluiu: “Lembre-se sempre, esta é a maldição do tempo, fazer com que os homens não percebam o espaço entre causa e conseqüência, ação e reação. Agora volte para a sua casa e se esforce para aprender sempre mais, porque o seu tempo ainda não é chegado. Meu nome é Yesod, e no dia da sua libertação, voltaremos a nos encontrar” . Dizendo isto, o anjo da morte elevou-se ao céu, até acima das nuvens, desaparecendo num clarão fulgurante.
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