Foi há muitos anos atrás…
No tempo em que a mamaurama se cobria de flores e os japins fabricavam seus ninhos feitos de fibras e cipós, finos, nas grimpas da maçaranduba gigantesca…
Êle era lindo, o mais lindo de todos os jovens de sua tribo.
Era forte e valente. Ninguém com mais destreza manejava a zarabatana temível, cuja flexa certeira cortava em meio o vôo da aracuã.
Somente êle sabia o segredo que lhe ensinava brandir o tacape pesado e duríssimo, desferir a flexa sibilante e traiçoeira.. .
Nunca o inimigo branco pisou a terra de seu pai que não levasse no corpo uma picada da sua uamiri. Nunca foi vencido; todos o temiam.
E o pai já velhinho sentia-se orgulhoso do filho que devia suceder-lhe na chefia da tribo, depois que o cunaua-raú gritasse pela quarta vez no tronco da tanari.
Uma tarde, o jovem bororó aprontou a sua veloz e pequena igara e pôs-se a "descer o riacho que serpeava um pouco distante de sua oca.
A tarde era bela, e o astro príncipe do universo, numa grande e triste apoteose, ia aos poucos inundando a terra de luz e de mistério.
Uma brisa soprava ciciante e fresca pela tarde a dentro e a igara pequenina, célere, ia cortando as águas ondulantes do riacho.. .
Era muito tarde quando êle voltou.
Já o lírio da noite havia fechado as suas pétalas rosadas e macias.
Sentou-se no tronco pesado de abiurana, à frente da cabana, e ficou ali durante quase toda a noite, silencioso, taciturno, olhando as estrelas piscolejar no azul claro, lavado. ..
A mãe bororó, vendo a tristeza imensa que invadia a alma perguntou-lhe:
— Filho, que tens? andas doente? O jovem bororó estremeceu.
Ergueu o olhar sombrio para a mãe e, quase de joelhos, meigo como uma criança, assim lhe falou:
— A igara, mãe, levada pela correnteza ia descendo… descendo… quando de repente ouvi, longinquamente, uma voz maviosa que cantava acompanhada por uma música dolente, tocada talvez por algum instrumento misterioso…
E eu não pude resistir… mãe… toquei a igara para lá e a vi, mãe, sentada numa grande pedra, os cabelos negros e compridos esvoaçando ao vento, e os olhos azuis como a flor da mancava a cantar, brincando com as plumas macias da enduape, uma mulher, mãe… bonita… como eu nunca tinha visto assim… Ela abriu os braços para mim, mãe, e me chamou, mas…, quando eu já estava bem próximo, as águas começaram a ferver… parei um pouco, ela olhou para mim sorriu e atirou-se na água e desapareceu …
A mãe bororó, que ouvia em silêncio a narração do filho, ergueu os olhos úmidos de pranto e falou-lhe:
— Filho, mulher bela que viste lá é Catira, ela é da tua raça, corre nas suas veias o sangue dos bororós. Ela era a mulher mais linda da tribo de seu avô. Mas um dia entregou-se a um homem branco, e o pajé achou que ela devia ser lançada ao rio para pagar a sua grande traição. As águas do riacho, porém, não quiseram receber seu corpo criminoso; jogaram-na sobre aquela pedra, onde ficou penando até hoje. Ela canta assim para atrair os bororós incautos ao lugar onde se encontra; a primeira vez foge como fugiu de ti, mas na segunda, fica ali sentada até ver as águas revoltadas, que guardam a sua caverna, tragar o corpo daquele que se atreveu a chegar até ali. É assim, meu filho, que ela se vinga dos bororós… Não volte nunca lá, meu filho nem tão pouco olhe para os olhos dela para que não sejas dominado pelo seu brilho traiçoeiro…
A mãe bororó calou-se, beijou a testa tostada do filho e retirou-se.
Era tarde já, atrás da serrania negrescente, com suas franjas de ouro, Sepi desaparecia.
Sentado no tronco pesado de abiurana, a fronte pensativa voltada para o chão, assim Sepi, o jovem bororó, amanheceu…
Mas nesse mesmo dia, ao anoitecer aprontou a sua veloz e pequena igara — esquecido da palavra de sua mãe — rasgou as águas ondulantes — o apecuitá feito de pau vermelho — e começou a descer o riacho vagarosamente.
E foi descendo… descendo… até sumir-se na curva.
Hoje os velhos bororós dizem aos filhos a lenda de Catira a índia amaldiçoada.
— Foi Sepi o último que ali ficou…
Depois as águas se tornaram tranquilas.. . a pedra desapareceu … e nunca mais ninguém ouviu nem ninguém viu, sentada ali aquela mulher de cabelos negros e compridos esvoaçando ao vento, e de olhos azuis como a flor da mancava, a cantar… a cantar…
E os velhos bororós terminam:
E dizem que ela morreu de remorso…
Lenda dos índios bororós.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
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