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HOJE ALGUMAS FRASES ME DEFINEM: Clarice Lispector "Os contos de fadas são assim. Uma manhã, a gente acorda. E diz: "Era só um conto de fadas"... Mas no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fadas são a única verdade da vida." Antoine de Saint-Exupéry. Contando Histórias e restaurando Almas."Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." Fernando Pessoa

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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O Sargento Que Foi ao Inferno

Havia numa terra um sargento, que era muito bom rapaz; um rico mercador tomou-lhe
amizade, arranjou-lhe a baixa e tomou-o para seu empregado. Como o mercador tinha filhas, o
sargento apaixonou-se por uma delas: ora o mercador era muito desconfiado e nunca deixava
sair as filhas de casa, mas pela grande conta em que tinha o rapaz ele mesmo lhe falou para
se fazer o casamento. Tudo corria muito bem; vai, acontece ir uma peça muito linda no teatro,
e como as filhas desejassem ver, pediram ao sargento, que só ele é que era capaz de apanhar
licença do pai para as deixar ir ver. O mercador ficou carrancudo, mas deu licença, dizendo:
– Deixo ir as minhas filhas com o senhor, e é com a condição, que quando der a última
badalada da meia-noite hão-de estar aqui à porta.
Disseram todos que sim, e partiram.
Quase perto da meia-noite, o rapaz disse para a sua noiva, que era bom retirarem-se para
casa. Mais um bocadinho, mais um bocadinho; pede daqui, pede dali, o certo é que já tinha
dado a meia-noite, eles ainda longe de casa.
Assim que o rapaz bateu à porta, abriu-se logo de repente, e o mercador começou a bradar:
– Foi assim que o senhor cumpriu as ordens que eu lhe dei? Pois trate já de arranjar as suas
coisas que nem já esta noite me fica em casa.
– Oh senhor, então só por isto! E quando estava já para casar com sua filha!
O velho respondeu-lhe:
– Só tem um meio de poder casar com minha filha, e voltar para casa.
– Qual?
– Vá ao Inferno, e traga-me três anéis que o Diabo tem no corpo, dois debaixo dos braços, e
outro num olho.
O rapaz achou aquilo impossível; mas que remédio teve senão pôr-se a caminho. Na primeira
terra a que chegou, pregou um edital em que dizia: "Quem quiser alguma coisa para o Inferno,
amanhã parte um mensageiro." Isto causou grande curiosidade, até que chegou aos ouvidos
do rei, que mandou chamar o rapaz. Perguntou-lhe o rei:
– Como é que você vai ao Inferno?
– Real senhor, por ora ainda não sei; ando em procura dele, e irei lá, dê por onde der.
– Pois bem, disse o rei, quando encontrares o Diabo, pergunta-lhe se ele sabe de um anel de
muito valor que eu perdi, do que ainda tenho grande desgosto.
Chegou o rapaz a outra terra e botou o mesmo anúncio. O rei também o mandou chamar:
– Tenho uma filha que padece uma doença muito grande, e ninguém lhe acerta com o mal. Já
que vais ao Inferno quero que saibas por lá onde é que estará a cura.
O rapaz partiu sempre à procura do Inferno, e foi dar a uma encruzilhada em que estavam dois
caminhos, um com pegadas de gente, e o outro com pegadas de ovelhas. Pensou, e por fim
seguiu pelo caminho das pegadas de gente; ao meio dele encontrou um ermitão, de barbas
brancas, que rezava em umas camândulas muito grandes, e lhe disse:
– Ainda bem que tomaste por este caminho, porque esse outro é o que vai para o Inferno.
– Oh, senhor! E eu há tanto tempo que ando à procura dele!
O rapaz contou-lhe todo o acontecido; o ermitão teve compaixão dele, e disse:
– Já que tens de ir ao Inferno, vai, mas sempre leva contigo estas contas, porque antes de lá
chegar tens de passar um rio escuro, e há-de ser um pássaro que te há-de levar para o outro
lado; e quando ele te quiser afundar no rio, joga-lhe as contas ao pescoço. Daqui em diante
não sei mais o que te sucederá.
Assim aconteceu. Chegado ao Inferno o rapaz teve um grande medo, e viu para ali um forno
vazio e escondeu-se dentro dele. Quando estava todo agachado, passou uma velha muito
velha e viu-o.
– O menino aqui! Ora coitadinho, que é tão lindo; se o meu filho o visse matava-o, com certeza.
O que veio cá fazer?
O rapaz contou tudo à mãe do Diabo; a velha teve pena dele, e disse-lhe:
– Olhe; pois deixe-se ficar aqui escondido, porque eu não sei quando o meu filho virá; ele está
assistindo à morte do Padre Santo, que está nas agonias, e quer-lhe apanhar a alma. O rapaz
pediu à velha se sabia do Diabo as perguntas de que trazia encomenda. Quando estavam
nestas conversas chegou o Diabo bufando; a velha escondeu-o logo, e disse:
– Anda cá, filho, para descansares; deita-te aqui no meu colo.
O Diabo deitou-se e ficou logo a dormir. A velha foi muito devagarinho com as unhas e
arrancou-lhe um anel que tinha debaixo do braço. O Diabo mexeu-se desesperado, gritando:
– Isto o que é?
– Ai, filho, fui eu que me deixei dormir, e dei uma pendedela em cima de ti. Estava a sonhar
com aquele rei que perdeu o anel, e que nunca mais o tornou a achar.
– Pois é verdade esse sonho, respondeu o Diabo; está debaixo de uma laje ao pé do repuxo do
jardim.
O Diabo tornou a ficar a dormir; a velha sorrateira arrancou-lhe o segundo anel. O Diabo tornou
a acordar desesperado:
_ Tem paciência, filho; tornei-me a deixar dormir e a sonhar com a filha daquele rei que
nenhum médico sabe curar.
– Também é verdade; a doença dela é o sapo-sapão, que está metido no enxergão.
Tornou o Diabo a dormir. Para arrancar o anel do olho é que foram os trabalhos.
A velha tirou-o com um espéculo, e o diabo com a dor e zangado com as pendedelas, saiu pela
porta fora. O rapaz recebeu tudo da velha; voltou para o mundo, quando ela chamou o
pássaro: "Menino, menino, menino." Foi dali entregar as contas ao ermitão. Depois passou pela
terra do rei que tinha perdido o anel, que lhe deu muito dinheiro quando o tornou a achar
debaixo da laje. Depois passou pela corte do rei que tinha a filha doente, disse onde estava o
sapo-sapão. A princesa melhorou logo, e o rei pediu-lhe para que dissesse a paga que queria.
– Quero que Vossa Majestade me dê o seu poder por oito dias.
O rei mandou deitar um pregão para ele governar oito dias; o rapaz partiu logo para a terra do
sogro, e deu ordem logo que lá chegou para o mercador dentro em meia hora lhe vir falar à sua
presença. O mercador foi, mas quando chegou era já mais de uma hora. O rapaz disse:
– Podia-o mandar matar, por me ter desobedecido, em vir depois da meia hora.
– Oh senhor, não me demorei por minha vontade.
– Pois sim. Mas porque não soube em tempo desculpar aquele pobre sargento que pôs fora de
sua casa?
O mercador conheceu então o antigo noivo de sua filha, que tinha sempre chorado, confessou
o seu erro, e pediu-lhe de joelhos muitos perdões. O rapaz entregou-lhe os anéis do Diabo, e
nesse mesmo dia casou com a sua namorada, por quem tinha metido um pé no Inferno.

Teófilo Braga
Contos Tradicionais do Povo Português
(1883)

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